quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A desigualdade no caminho da civilidade.

Um assunto que está sempre na boca das pessoas, mas raramente encontra um debate sério e aprofundado é o da civilidade. Quão frequente em nossos papos no trabalho, com família e amigos, o tópico é o comportamento “das pessoas” em tal lugar, evento ou situação: ninguém dá o lugar a idosos no ônibus; pessoas furam fila no show; tumulto desnecessário e pessoas se empurrando no check-in do aeroporto, etc, etc. Estamos sempre insatisfeitos e falando de pequenas demonstrações (ou da falta) de civilidade, mas nunca da civilidade como um todo, e das razões para termos tantos problemas com a mesma.

Desde que começamos, mais ou menos por volta da adolescência, a enfrentar o mundo sozinhos, sem a companhia constante de nossos pais, nos deparamos com diversas situações que nos obrigam a estar atentos às regras de conduta em cada contexto, afim de tornar o convívio em sociedade mais agradável e eficiente para todos. Essa atenção ao contexto varia muito de pessoa pra pessoa, dependendo de um sem número de variáveis, educação, história de vida, etc – e essa variação cria os atritos que tanto vemos todos os dias à nossa volta.


Antes de seguir com essa reflexão, uma pequena pausa para definir melhor do que estamos falando, e vou pegar emprestado aqui a definição do Wikipedia, que achei muito boa.


Civilidade é o respeito pelas normas de convívio entre os membros duma sociedade. Não confundir com civismo que tem que ver com o respeito pela sociedade organizada, pelas instituições e pelas leis.

Podemos tentar concluir que, quanto mais as pessoas respeitam as regras de convívio, mas civilizada uma sociedade é. Quando dizemos que uma pessoa “é civilizada” é por que ela se importa com essas regras de convívio e está sempre atenta a elas – especialmente por que tais regras mudam bastante dependendo do local e situação em que se encontra; a civilidade está na pessoa e não no local ou no evento. Uma pessoa civilizada estará atenta às regras de convívio tanto no lugar onde nasceu e viveu a vida inteira, como na China, no Irã, num show de rock ou em uma missa. Reparem que usei bastante a palavra “atenção”, no meu entendimento a atenção, o “estar consciente” do contexto e das necessidade do outro, é o cerne da civilidade.

É bastante difícil refletir sobre o aspecto abstrato e mais amplo da civilidade se você tem apenas uma referência para tal. Ou seja, se você conhece apenas um conjunto de regras, a do lugar onde você nasceu e viveu. Se você nunca saiu desse lugar e nunca viu pessoas se portando de outra forma, como vai saber que é possível? Ver na TV e ler em livros não é o suficiente, você precisa vivenciar e observar para fazer comparações e tentar entender as diferenças, os estímulos e desafios. Não estou dizendo que é impossível, apenas mais difícil.

Vamos pegar um exemplo para ilustrar isso que acabei de dizer: a questão do posicionamento das pessoas em escadas ou esteiras rolantes. É bem evidente para qualquer pessoa que use o Metrô com alguma frequência que por aqui a regra (na verdade, a falta dela) é: fique parado ou ande na posição que quiser, independente de qualquer coisa. Mas quem já esteve na Europa, EUA ou qualquer outro lugar com um conjunto de regras de convívio (civilidade) um pouco mais avançadas que a nossa, observou que, por lá, na mesma situação, as pessoas só ficam paradas à direita, deixando a esquerda livre para quem está com mais pressa e quer andar ou subir a escada. Você não precisa ter ido à Europa para entender que isso é mais eficiente e melhor pra todos, basta você parar, observar, refletir um pouco e você perceberá isso. Mas indo lá e vendo funcionando é como um choque de realidade que encurta bastante o caminho da reflexão necessária. Essa reflexão, é o pulo do gato, é o que falta no inconsciente coletivo em um local onde as pessoas simplesmente não conseguem (ou não querem? falarei sobre isso adiante) entender algo tão simples de fazer, que melhora a vida de todos em um determinado contexto.

O que nos faz fundamentalmente diferentes dos cidadãos que fazem o correto (no exemplo acima) sem sequer pensar a respeito? Somos mais burros e não entendemos? Somos mais idiotas e egoístas e não fazemos de propósito? Bastante simplista pensar dessa forma, simplesmente associar a coisa toda ao “nosso jeito” – “povo ignorante, sem educação, não tem jeito mesmo”, perdi a conta de quantas vezes ouvi isso. E sabemos bem que a coisa toda não tem como ser reduzida simplesmente à nossa educação, tanto a formal (escola) quanto a dada pelos pais, pois vemos o comportamento indevido mesmo entre as classes mais altas e teoricamente mais bem educadas da população. Tem que ser algo a mais. O que, então?

Para não ficar parecendo que estou aqui apenas babando ovo de europeu, como se fossem o último biscoito do pacote em termos de educação e civilidade, não é nada disso. Mas é a melhor referência que temos, pelo menos para mim, das viagens que fiz até esse momento – e que não foram poucas. Em primeiro lugar, seria extremamente leviano e até idiota falar da Europa como uma unidade onde as pessoas e culturas são basicamente as mesmas (ou mesmo similares) quando o assunto é civilidade. Nada poderia estar mais longe da realidade. Mas a título de argumentação, falamos em Europa como uma abstração para os países mais “famosos” da Europa Ocidental (França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, etc). Em segundo lugar, pois certamente há aspectos do comportamento deles que não são lá muito agradáveis, como por exemplo a arrogância dos franceses com turistas (e não adianta me dizerem que isso é papo, pois experimentei mais de uma vez na minha última viagem para lá – é bem real!). E em último lugar, mas não menos importante, por que é muito complicado comparar a civilidade de um lugar com outro em termos práticos e eleger qual é a “melhor”. Que peso teria, por exemplo, a xenofobia, nesse cálculo? A xenofobia deveria entrar no cálculo? Ao meu ver, não necessariamente, pois é um fenômeno social distinto e igualmente amplo, mas ela possui alguns aspectos que impactam diretamente o comportamento das pessoas em convívio.

A civilidade pode ser observada, no entanto, sob outra ótica, que não o bem-estar de cada pessoa envolvida em uma interação social, mas sim na eficiência e pleno funcionamento e organização de um local, evento ou situação. Isso é bastante fácil de observar, por exemplo, no trânsito, onde é bastante comum observar pessoas agindo de forma egoísta se preocupando muito pouco em agir com civilidade: fecham cruzamentos, andam pela pista da esquerda em baixa velocidade, etc – além de serem atitudes mal-educadas ou simplesmente desatentas, afetam diretamente a eficência do trânsito como um todo. Se todos tivessem maior consiência (como a tem, por exemplo, na escada rolante) e agissem com maior civilidade, o trânsito seria um lugar muito menos estressante e seria muito mais fluido – possivelmente até mais rápido.

O que faz, então, que haja sociedades onde as pessoas (e seus governos) se preocupem com essas coisas e outras nem tanto? Quais são as coisas que estimulam incrementos na civilidade e quais são os obstáculos? Essa não é uma pergunta fácil de responder, mas mesmo assim eu vou tentar, por que eu sou metido a besta.

Como estou aqui, fazendo um exercício, tentando entender a civilidade como essa “coisa abstrata” que surge espontaneamente em uma sociedade – e que não adianta empurrar goela abaixo das pessoas com cartilhas, placas e sinais – eu arriscaria a dizer, que um dos grandes obstáculos que temos por aqui é a grande desigualdade social. Nosso país é um dos mais desiguais do planeta, está na posição 116 de uma lista de 126 países. Essa desigualdade cria um atrito entre as pessoas, que varia do muito sutil ao totalmente explícito. Mesmo quando muito sutil, as pessoas menos favorecidas, até sem perceber agiriam de forma “não civilizada” no intuito a devolver à sociedade o abandono que sofrem, na forma de uma desobediência às regras impostas – até mesmo quando tais regras os beneficiariam caso todos a seguissem. Os mais favorecidos devolvem na mesma moeda, se considerando merecedores de tratamento especial, agem com arrogância e desrespeito, especialmente quando interagem com as classes mais baixas (quem nunca presenciou uma cena patética dessa?).

Isso é um chute no escuro para tentar explicar algo extremamente complexo, certamente não a única ou até talvez nem a principal causa, mas pode ser um bom ponto de partida. Se você tentar projetar a teoria em locais com menos desigualdade (e maior civilidade), funciona também, pois as pessoas se consideraram mais iguais entre si, ao dividirem um espaço público, se portarão da forma como gostariam que os outros se portassem, pois confiam que o outro vai “entender” e agir reciprocamente sem dificuldade – visto que a maioria teve acesso à basicamente os mesmos benefícios de estudo, educação e segurança, o inconsciente coletivo sofre menos interferência dos atritos oriundos da desigualdade.

Para que fique claro, e evitar comentários desnecessários, não tem nada a ver com “pobre é burro, não sabe se comportar”. Eu não sugeri uma relação direta entre civilidade e posição social. Tem a ver com a desiguldade e como ela é percebida. E ela afeta a todos, não apenas a base e o topo da pirâmide, pois a estratificação – ou “luta de classes” – em si é um aspecto muito vivo em sociedades desiguais como a nossa. As comparações, preconceitos e atritos estão em toda parte, em tudo que fazemos – inclusive, como sugere minha teoria (e que certamente não é nova, reconheço), na forma como nos comportamos.

FONTE: Desajustado

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